Bolsonaro vai a guerra pela Reforma da Previdência
Paulo Moreira Leite
O esforço da equipe de Jair Bolsonaro para aprovar — antes da posse — as mudanças na Previdência Social e no controle sobre a venda de armas de fogo explica-se por uma questão elementar de estratégia política. São propostas importantes para o programa de governo mas rejeitadas por larga margem pela maioria dos brasileiros e brasileiras. O cálculo aqui é banal. Quanto mais tempo o país puder refletir sobre estes assuntos, mais fácil será organizar a mobilização para derrubar propostas que a população rejeita.
O caso do comércio de armas é típico. Embora tenha sido uma das bandeiras permanentes da campanha de Bolsonaro, a liberação de venda de armas de fogo continua rejeitada pela maioria dos brasileiros e brasileiras. Em pesquisa realizada pelo Data Folha três dias antes da votação em segundo turno, com 9.173 entrevistas em todo país, o eleitorado confirmou uma opinião conhecida. Enquanto 41% se disseram a favoráveis à liberação, 55% ficaram contra.
Essa diferença é equivalente a 14,4 milhões de pessoas, número superior à diferença de votos entre Bolsonaro e Haddad no segundo turno. Esse dado mostra que um número significativo de eleitores do próprio candidato do PSL também condena a mudança. No Sudeste, onde Bolsonaro recebeu 49,2% milhões de votos, os favoráveis a liberação ficaram em 40% — os adversários somaram 57%. A liberação só é maioria nos Estados da região Sul — 58 contra 39 –, enquanto o Nordeste é o lugar onde a rejeição é mais alta: 65 a 30.
No caso da Previdência, a pressa de Bolsonaro equivale a realizar uma manobra às costas do eleitor. Até os tapetes do Congresso sabem que uma mudança dessa natureza jamais será aprovada em condições normais. Em 2017 a reforma planejada por Temer-Meirelles foi despachada para o mundo das causas perdidas quando ficou claro que nem um Congresso que capaz de aprovar a reforma trabalhista teria estômago para mudar a Previdência. Um levantamento do Data Folha (02.05/2017) demonstrou que uma maioria gigantesca de 71% recusava a reforma. Entre a minoria de 21% a favor, a parcela maior eram os brasileiros mais endinheirados.
Basta lembrar que Bolsonaro foi eleito por 39% para reconhecer a guerra que será aprovar uma proposta rejeitada por 71%.
Assim que assumiu seu lugar na campanha, o guru Paulo Guedes defendeu um acordo com o governo Temer e a liderança do Congresso para permitir a votação antes do fim do ano. O plano é simples e volta a ganhar atualidade agora.
Já punidos pelo cidadão comum– 51% dos deputados foram aposentados pelo eleitor em 2018, grande parte como resposta à reforma trabalhista — parlamentares em fim de mandato demonstram menor resistência para apoiar projetos impopulares. Em busca de um novo rumo na vida após o percalço nas urnas, boa parte sequer disfarça a disposição de reforçar um projeto que é uma prioridade sagrada do mercado financeiro internacional, há décadas de olho num dos mais ricos e eficientes sistemas de Previdência pública do planeta.
A ideia também pode permitir um casamento de conveniências entre Bolsonaro e Temer, pois é um caso típico de interesses mútuos.
Multiplicando gestos de boa vontade em direção ao sucessor, Temer pode abrir caminho para uma aposentadoria menos tumultuada quando deixar o Planalto e perder as prerrogativas que mantém a Lava Jato provisoriamente longe de seus calcanhares.
Já Bolsonaro pode esconder-se atrás de um governo moribundo para aprovar um projeto que costuma deixar uma marca de ferro no mandato de todo presidente — como aconteceu até com Lula, que enfrentou protestos logo depois da posse, em 2003, quando deu sequência a uma mini reforma da previdência herdada de Fernando Henrique.
O detalhe é que Bolsonaro venceu a eleição em circunstâncias muito mais difíceis e não há garantia de unidade em torno de um projeto tão importante. Apontado como futuro chefe da Casa Civil, o deputado Onix Lorenzoni era contra a reforma de Temer em 2017 e faz reservas contra a ideia de Paulo Guedes de levar o tema a votos antes da posse.
Bolsonaro teve uma vitória magra no segundo turno, de 55% a 45% dos votos válidos. Por comparação, em 2002 Lula recebeu 61,2% dos votos válidos — contra 38,7% para José Serra. Sua vitória abriu caminho a um novo pacto entre as forças políticas do país, coisa que Bolsonaro não quer e não demonstra interesse em fazer, empregando a postura bélica do Choque e Pavor, típica das guerras modernas levadas pelos EUA — como deixou claro na resposta grosseira a uma mensagem bem-educada de Fernando Haddad.
Após uma campanha na qual a distribuição de fake news foi a prioridade número 1, quando recusou todos os convites para participar de debates no segundo turno, coisa inédita na história das eleições após a democratização, Bolsonaro tem pressa para tocar a Previdência. É a melhor forma de impedir a população de se organizar, como fez há dois anos, para impedir um golpe fatal no Estado de bem-estar social construído pelos brasileiros em quase um século de história.
Alguma dúvida?